CASO ATIBAIA
Dossiê Falcão: quando futebol e política se tornam um só
Por Rafael De Luca, com participação de João Paulo Fernandes
Em dezembro de 2005, o município de Atibaia viu surgir um projeto que fortaleceria a cena do futebol profissional e também faria a cidade entrar de vez no cenário esportivo estadual, depois de passar cerca de 15 anos sem nenhum clube profissional que representasse a cidade. Com um Falcão de mascote, a diretoria e os governantes, em parceria com um grupo de empresários, estruturou e deu condições para que o time, assim como a ave que o representa, iniciasse seus altos vôos no cenário paulista. Após um período de acertos e erros, o time conseguiu em 2014 sua primeira grande conquista dentro das quatro linhas: o acesso à Série A3 2015.
Imediatamente ao acesso, surgiram os primeiros indícios de que a subida meteórica do Atibaia poderia não ser tão abrupta assim. Isso porque já em 2015 o time conquistou o acesso, de forma consecutiva, à Série A2 do Campeonato Paulista, ficando assim a um passo da sonhada elite estadual. No entanto, a Federação Paulista de Futebol (FPF) não permitiu que o clube subisse de divisão por não possuir um estádio que atendesse aos pré-requisitos mínimos para disputar a competição.
Pelo Artigo 41 do regulamento da Série A2, um clube só está apto a jogar o torneio se possuir um estádio com pelo menos 8 mil lugares no município onde o clube está sediado. Ou seja, o equipamento utilizado até então, o estádio municipal Salvador Russani, com capacidade para apenas 3 mil torcedores, não tinha condições de receber partidas do Atibaia, a menos que fosse remodelado.
Com o acesso comprometido pela estrutura do clube atibaiense, que nesse mesmo ano começava a ser supervisionado e gerido pela AMB SPORT, restou ao time da pacata cidade continuar na terceira divisão, na qual se acostumou a mandar seus jogos a 94.2 Km de distância, na cidade de Indaiatuba.
Foi no estádio Ítalo Mário Limongi que a torcida, empolgada com os primeiros saltos do Falcão, se reuniu para apoiar o time da cidade do morango. Com ônibus ofertados pelo clube, os torcedores acompanharam todos os passos e tropeços do clube até o ano de 2018, quando o Sport Club Atibaia conquistou não só o acesso para a Série A2, como também o primeiro troféu de sua história, após vencer a Portuguesa Santista por 2 a 1 em Bragança Paulista. Com mais esse acesso, evidentemente, o entrave do estádio voltou à tona, dessa vez, com o poder público municipal entrando na jogada.
Com o previsto sucesso do time na última edição da série A3, os políticos do município, encabeçados pelo prefeito Saulo Pedroso (PSB), desenvolveram um projeto para resolver dois problemas crônicos da cidade: a falta de uma praça esportiva à altura do futebol local, que ganhou muita força desde a fundação do clube, e o preenchimento da lacuna de um terminal rodoviário condizente com o movimento da turística cidade de pouco mais de 140 mil habitantes.
O projeto de um terminal rodoviário/estádio causou estranhamento em parte da população, entre eles a arquiteta Lilian de Oliveira e o especialista em gestão pública Roberto Vilas Boas, pessoas que acompanharam todo o processo, desde a concepção até a sessão de votação na Câmara Municipal dos Vereadores, realizada no dia 12 de junho de 2018.
A reportagem teve acesso a alguns documentos e laudos técnicos do projeto, aprovado por 9 votos a favor e apenas 2 contra. Driblando questões ambientais e, inclusive, questões constitucionais, a obra foi denunciada ao Ministério Público. A Ação Civil Pública, ingressada pela Promotora de Justiça Regina Bárbara Murad Louzada, acusa o prefeito Saulo por ato de improbidade administrativa.
O prefeito Saulo Pedroso, conhecido como Saulo do Gás, responde a pelo menos duas denúncias de improbidade administrativa e foi afastado do cargo em 2016 devido ao processo no qual responde por recebimento de propina e superfaturamento. Em junho do mesmo ano, o STF barrou a denúncia. No entanto, em abril de 2018, o mesmo STF voltou atrás e o afastou novamente do cargo | Foto: Prefeitura de Atibaia
Entenda as irregularidades
Em junho de 2017, a prefeitura abriu estudos para a verificação de viabilidade de modernização do estádio Municipal Salvador Russani, local esse que um ano antes teve parte de sua estrutura avariada devido a um forte temporal que acometeu a região. Desde então, a prefeitura, juntamente com a iniciativa privada, buscou parceiros para remodelar o equipamento público a fim de resolver o problema do estádio e também permitir que o clube pudesse jogar em solo atibaiense.
Após um mês, contudo, entendendo que seria inviável a reforma do estádio, foi aberto um Comitê Avaliador de Demonstração de Interesse para um projeto de estádio/terminal rodoviário em terrenos localizados no bairro do Recreio Estoril, às margens da rodovia Fernão Dias (BR38) e próximo à principal entrada da cidade (mapa ao lado. Print retirado do Google Maps).
Com intenção de permutar a praça pública onde está o Salvador Russani, terreno encravado no bairro do Alvinópolis, um dos mais valorizados da cidade, e avaliado pelo estudo em R$ 22.796.517,86 (Vinte e dois milhões, setecentos e noventa e seis mil, quinhentos e dezessete reais e oitenta e seis sentavos), o governo municipal receberia um terminal rodoviário e também um novo estádio com todos os pré-requisitos da FPF.
Com possibilidade de exploração de um terreno muito valorizado pela especulação imobiliária e um projeto esportivo audacioso, empresas como a BFA Multiempresa Ltda., GIFER Participações e Empreendimentos Ltda., THS Oliveira Empreendimentos e o arquiteto Thiago Pelakaukas demonstraram interesse e enviaram projetos para análise do Comitê. No dia 12 de março, o projeto da THS Oliveira foi escolhido e, três meses depois, aprovado de forma acelerada por 9 a 2 na Câmara dos Vereadores, quase sem nenhum parecer jurídico ou especializado sobre o assunto.
Um dos defensores do projeto, o vereador Michel Carneiro (PCdoB), nomeou as irregularidades apontadas como “pelo em ovo”. Mesmo sem os laudos e pareceres jurídicos mínimos para o entendimento total do projeto, o mesmo foi aprovado | Imagens: Reprodução
As incertezas começaram com a empresa vencedora do processo, a THS Oliveira. Sediada na cidade de Bragança Paulista, o CNPJ vinculado à empresa possui apenas 38 mil reais em capital social – muito pouco se levarmos em consideração que essa mesma empresa será responsável por duas obras grandes – e tem endereço vinculado a uma casa simples no bairro Jardim do Cedro.
A reportagem ligou para o celular, único telefone cadastrado juntamente com o CNPJ da empresa, mas não encontrou resposta. Vale ressaltar aqui também que a empresa não possui site oficial ou página no Facebook. Procurado também, Tiago Oliveira, dono da THS, não atendeu até o fechamento da matéria.
Ação do MP
Com um projeto cheio de incertezas e incongruências, não demoraram a surgir denúncias junto ao Ministério Público. Na última quarta-feira, 12, a Promotora de Justiça Regina Bárbara Murad Louzada ingressou com uma ação civil pública para anular a permuta.
Uma das incongruências encontradas pela promotora possui relação aos estudos de viabilidade apresentados pela municipalidade. O único estudo apresentado foi feito pelo proprietário do terreno que seria comprado pela prefeitura, Carlos Alberto Santini Chedick, que inclusive já havia participado de negociação semelhante envolvendo um outro terreno próprio.
“Curioso o interesse da Prefeitura em terrenos de propriedade do Sr. Chedick. Considerando a inadequação do solo para a construção pretendida pela Municipalidade, há de se concluir que o requerido SAULO buscava promover permuta de um imóvel edificável e em área de interesse para empreendimentos imobiliários por um imóvel com problemas de permeabilidade e que demandaria muito mais custos para torná-lo edificável. Teria o requerido SAULO a mesma postura negligente se se tratasse de um negócio próprio? SAULO realizaria permuta para construir em um imóvel que demandasse maior dispêndio do seu próprio dinheiro? Com certeza a resposta seria negativa, a postura de SAULO é flagrantemente improba”, complementa a promotora.
Outro fator que chamou a atenção do MP foi a ação, considerada dolosa, de Saulo Pedroso durante o processo de dispensa de licitação dos novos projetos, considerado pela ação como ilegal, tendo em vista que o mesmo artigo que foi utilizado pela prefeitura para a dispensa de licitação, o art. 17 da Lei 8.666, não inclui a liberação do processo licitatório no ato da obra. A autora da ação também é clara em relação a impossibilidade de oferecer um bem (permuta) – no caso, o terreno do estádio Salvador Russani – em troca da obrigação de fazer algo, ou seja, a construção futura do terminal rodoviário e do novo estádio.
“Logo, o dolo está caracterizado. SAULO tinha ciência dos prejuízos que seriam causados ao erário ao permutar nos termos que o fez. Porém, esse fato não o impediu de realizar a permuta”, conclui Regina Bárbara Murad Louzada.
*O Sr. Carlos Alberto Santini Chedick não é investigado e também não é parte da Ação Civil movida pelo MP
Viabilidade em cheque
A arquiteta e urbanista Lilian Maria de Oliveira Carneiro, citada pela promotoria como autora de um estudo de viabilidade que foi praticamente descartado pelo poder público do município, foi uma das pessoas que questionaram o processo do estádio desde sua concepção.
Ao ver a localização e o modelo de construção propostos pelo edital, Lilian percebeu também que a localização, a proximidade de um hospital e a questão ambiental eram outros fatores que impediriam todo o processo. Dessa forma, a arquiteta apresentou junto ao Comitê um projeto de inviabilidade, para demonstrar às autoridades e à comunidade atibaiense que os empreendimentos propostos seriam difíceis e, sobretudo, danosos para a cidade. A fim de tornar o entendimento mais didático e profundo, separamos as questões técnicas mais relevantes em tópicos e deixamos o áudio na íntegra no qual a especialista pontua individualmente os motivos técnicos que impedem a obra. São eles:
Drenagem (do terreno e do campo do futuro estádio)
Distância de hospital próximo
Dispersão em dias de jogos grandes
A proximidade de um terminal rodoviário com um estádio de futebol também foi um fator complicante pela arquiteta. De acordo com ela, em dias de grandes públicos no estádio – fator a se pensar, já que o projeto do clube é chegar à elite paulista – seria extremamente complicado acessar e, principalmente, sair de lá em dias de jogos, já que os ônibus do terminal também estariam funcionando no momento e nos dias de utilização do estádio. “Para chegar ao estádio, chega pouco a pouco, mas, para sair, sai de uma vez. E aí é o ponto crítico”, completa ela.
Questão ambiental
Além das suspeitas levantadas sobre o processo de permuta concedido pela Prefeitura de Atibaia, outra questão polêmica que envolve o projeto do novo estádio e terminal rodoviário é a das condições do terreno escolhido para instalação das obras.
A área cedida pelo poder público municipal está localizada no Bairro Recreio Estoril, próximo à rodovia Fernão Dias. O local, porém, é classificado como uma Área de Proteção Ambiental (APA), zona de preservação de ecossistemas locais protegidos por leis e onde o uso dos recursos naturais também é regulamentado – ou até mesmo proibido, em alguns casos – pela Constituição Federal e pelo Código Ambiental.
Outro ponto importante fortemente destacado pelas pessoas que brigam contra a construção do novo estádio é o da fragilidade da área em questão. Segundo dados da análise ambiental que consta no documento apresentado ao Ministério Público, o local onde o projeto do novo estádio seria abrigado foi apontado como zona de risco, pois quaisquer alterações no terreno podem ser determinantes para agravar o problema de enchentes que há tempos atinge a região.
O relatório que norteia o processo pela anulação da permuta do território da prefeitura pela construção do estádio/terminal traz os apontamentos de diversos estudos que indicam que o local, além de protegido por lei, é arriscado para realização de construções de imóveis.
A arquiteta Lilian de Oliveira, como dito, também foi responsável por um dos estudos que constam no relatório entregue ao MP. Segundo ela, a instalação das obras terreno do Estoril é uma questão de negligência devido à quantidade de problemas que tal ação pode desencadear. “A conclusão que eu tive após a elaboração desse estudo inicial de viabilidade é de que aquele terreno não comporta os dois equipamentos [estádio e terminal rodoviário] com a devida permeabilidade, com a devida preocupação com segurança, acessibilidade e drenagem”, aponta.
Além do estudo da arquiteta e da análise apresentada pelo engenheiro civil Walmir Pereira Modottino no relatório da Ação Civil Pública, outras duas perícias sobre as condições do terreno do Jardim do Estoril foram produzidas, a fim de justificar a represália contra projetos de construção de imóveis no local.
Uma delas foi executada pelo próprio Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) da cidade, em parceria com a Hidrostudio Engenharia Ltda. Segundo a avaliação, o terreno onde seria construído o novo estádio é indicado “como trecho crítico e prioritário para desobstrução”, pois o local já sofre com inundações devido a outros fatores, como a intensa ocupação nas áreas próximas às margens do rio Atibaia, e por isso deve ser desocupado para melhorar o escoamento da água na região.
Para Wilson Roberto VIllas Boas Antunes, economista e especialista em gestão pública, os estudos por si só deixam claro que a utilização do terreno negociado pela prefeitura com a THS Oliveira Empreendimentos é uma falha grave para com a população da cidade, mas principalmente com quem mora nas proximidades da área. “Pior de tudo é a ocupação de uma área de várzea, mediante aterro para construção de um estádio, agravando ainda mais as áreas atingidas pelas enchentes e contrariando os estudos e recomendações do DAEE”, ressalta.
Concessão da Fernão Dias como entrave
Direito de resposta
A Prefeitura Municipal da Estância de Atibaia, em nota à reportagem, diz que “A Prefeitura da Estância de Atibaia ainda não foi notificada da ação, mas esclarece que a proposta de construção de um complexo esportivo com arena de futebol e um novo terminal rodoviário, pela iniciativa privada, mediante permuta com área do Campo do Alvinópolis, está embasada em pareceres jurídicos que atestam a legalidade do ato, portanto será defendida perante o Judiciário”.
A THS Empreendimentos não atendeu nenhuma de nossas tentativas de contato, mas em entrevista ao Globoesporte.com no último dia 12, Tiago Oliveira, dono da empresa, afirmou também esperar um parecer da justiça e que até segunda ordem as obras estão paralisadas.
O vereador Michel Carneiro (PCdoB), que havia dito na votação que a inconstitucionalidade do projeto era apenas “pelo em ovo”, foi procurado através de sua página oficial de campanha para Deputado Estadual, mas não se pronunciou.
O presidente do Sport Clube Atibaia, Alexandre Barbosa, também foi contatado, mas não enviou qualquer resposta sobre o caso até o fechamento desta matéria.
A Federação Paulista de Futebol confirmou a informação de que exige alguns requisitos básicos com relação ao estádio das equipes que desejam participar de suas competições, mas disse que não se envolve em qualquer processo que não esteja relacionado aos torneios organizados pela Federação nem em assuntos particulares dos clubes.
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- Rafael De Luca
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One Comment
DANIEL CHESCON ANTUNES CORREA
19. set, 2018Boa matéria, a população tem que saber o que seus representantes estão fazendo, ainda mais quando se trata de assuntos estratégicos para o futuro da cidade.
Parabéns !